CARTA AOS PAIS

CARTA AOS PAIS

queridos pais,

esta é uma carta de mentira.
ela se esconde atrás de versos,
linguagem pouco usual nesta categoria de diálogo.
é embalada pelas músicas que vocês não ouviriam,
pelos vícios que vocês não gostariam
e pelos motivos que vocês não ousariam.
mas, mesmo assim,
é expressão verdadeira dos falsos caminhos que seu sangue tem percorrido,
bem menos previsíveis do que as trilhas
que as veias que chegam e saem do seu coração percorrem.
 
é também uma carta ingrata,
porque sinal de uma distância,
existente somente por causa dos primeiros passos
que suas mãos me ensinaram a dar.
nem seus olhos,
nem seus sonhos.
esta carta vai, então,
na tentativa de alcançar o inalcançável sentimento que nos une.
 
aqueles das orações ao pé da cama, lembram?
eles já não são nem puros, 
nem simples.
e provavelmente odeio o que vocês não compreendem
e amo o que vocês não gostariam.
mas, é certo,
 
em meus sonhos,
carrego 
em minha cabeça 
um balaio
cheio desses sentimentos incompreensíveis. 
e, talvez por não saber para onde os levo,
encaminho nesta carta a saudade
dos seus dedos, mãe,
que se enrolavam em meus cabelos até eu dormir;
do seu olhar, pai,
simples e franco,
sempre acompanhado de um sorriso.
 
escrevo esta carta e as lágrimas ameaçam manchá-la.
estas, pai,
continuam as mesmas daquelas vezes em que eu,
mil vezes mais pequeno,
não compreendia suas razões.
escrevo esta carta e o otimismo continua o mesmo, mãe.
não desisti de ser bom,
nem deixei de perceber que as coisas sempre ficam melhores do que estavam.
 
que vocês não entendiam?
ele não acabou…
vivo agora
tentando consertar meu mundo.
quanta bagunça!
até parece meu quarto de criança.
a diferença é que naquele eu sabia onde estava tudo.
neste, 
tudo me encontra,
não importa onde eu esteja
e me faz lembrar…
 
esta carta é para ser lida naquela sala de tv,
onde vocês e eu de nada sabíamos do futuro,
e ali,
aconchegado na sensação de quem nada espera,
mas do amor tem certeza,
lhe verei, mãe,
caminhando decidida,
uma mão com a travessa cheia de bolinhos de carne,
a outra, suco de laranja,
a nos olhar,
na esperança de que tudo fosse eterno.
ali lhes direi que posso não amar como gostariam,
mas lhes amo como posso.
e que você tinha razão, mãe,
aqueles momentos foram eternos.